Tiradentes herói, na leitura do Teatro de Arena
“Ah, como é difícil ser herói
Só quem tentou sabe como dói
Vencer satã só com orações”
Esses versos da música de João Bosco e Aldir Blanc ecoaram no 13º álbum de Ellis Regina, no ano de 1973. O Brasil encontrava-se ainda na metade do caminho da liberdade, dentro da longa noite de escuridão que foi o regime militar.
Mas seis anos antes, em 1967, o Teatro de Arena problematizava o significado de herói em sua peça Arena Conta Tiradentes.
Reescrevendo o aforisma do dramaturgo alemão Bertolt Brecht “Infeliz a nação que precisa de um herói”, Augusto Boal cravou: “Mas não são somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis.”
Defendendo sua tese e centrando na figura mítica de Tiradentes Boal lembrou que as “classes dominantes têm por hábito a 'adaptação' dos heróis das outras classes.” Para isso, eliminam o que é essencial, promovendo características circunstanciais.
Exemplificando com o sucedido a Tiradentes, Boal escreveu que “a importância maior dos atos que [Tiradentes] praticou reside no seu conteúdo revolucionário.”
E qual seria o conteúdo revolucionário da ação de Tiradentes?
Responde Boal: “Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substituí-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade de seu povo.”
É o caso de explicar o significado que a Sociologia dá à expressão povo para avaliar a interpretação que Boal dá a esse conceito.
A mais simples, copiada da Internet, diz que “Povo é um conjunto de pessoas que, num dado momento histórico, constitui uma nação.”
Ora, se aceitamos que todas as interpretações dadas à Inconfidência Mineira destacam o fato de ter sido ela promovida por, e a favor, dos interesses dos endinheirados, e que o único representante do povo era justamente Tiradentes, teremos que concluir que o herói não tinha exata noção de que agia não a favor do povo, mas de quem vivia da exploração de seu trabalho.
Outra possibilidade, considerando o período politicamente difícil em que o processo de montagem da peça se dá, é que à Boal e à trupe do Arena, esse detalhe era negligenciável, diante da proposta maior de inverter o sinal do mito dado pela classe que assim o elegeu, enfatizando as contradições evidentes do personagem, para enaltecer o que de revolucionário sua ação contém.
O que faz sentido quando linhas abaixo, Boal afirma: “Hoje costuma-se pensar em Tiradentes como o Mártir da Independência, e, esquece-se de pensá-lo como herói revolucionário, transformador da sua realidade. O mito está mistificado. Não é o mito que deve ser desmitificado, é a mistificação.”
Se pudesse acompanhar esse debate, Tiradentes talvez faria coro com Elis Regina, João Bosco e Aldir Blanc:
“Ah, como é difícil ser herói
Só quem tentou sabe como dói
Vencer satã só com orações”
No mês de abril de 2023, a história que o Arena contou sobre Tiradentes e Inconfidência Mineira foi revivida no espaço da Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo.
A artista do palco, atriz e diretora, Maria Mirtes Mesquita liderou uma oficina em que jogou luz sobre momentos da peça, junto a um grupo de jovens atores e atrizes interessados em conhecer a experiência do Teatro de Arena, seu legado no contexto do Brasil em 1967, e as ressonâncias com o momento atual do Brasil.
O resultado dessa imersão poderá ser visto no mini documentário produzido pela Abacauan, em seu canal no YouTube.