Do Sal ao Mel: Sandra Fidalgo
Vou na valsa da vida tenho sede de viver
Vou na valsa da vida tenho medo de morrer
Vou narrando a esperança/Escrevo poesias
Vou narrando a esperança/Sonho alegrias
Quem ousa cantar a felicidade, a esperança e o amor em tempos de ódio, agonia e terror?
Manhã Azul não é só o mais recente trabalho da compositora e intérprete portuguesa Sandra Fidalgo, em parceria com o multitalentoso músico brasileiro Swami Junior, que a acompanha em todas as faixas ao violão.
Neste seu quinto álbum, Sandra aprofunda o caminho que escolheu seguir em 2004, ano em que lançou, ainda em Portugal, seu primeiro projeto: Diário Azul.
Seus trabalhos posteriores comprovam que ela transita na contramão das tendências musicais da moda, não aceitando rótulos para seu talento.
E por aí ela foi desenvolvendo seu repertório, feito de canções que falam diretamente ao coração de quem se dispõe a ouvi-la.
Uma possível pista para identificar o projeto artístico de Sandra Fidalgo pode se perceber nos versos de Rumo, incluída no novo trabalho:
O que quero é mesmo compreender
Há tanto a conhecer tanto para crescer
Saber para mudar mudando o saber
Há alguém tão feliz que nada de ruim tenha acontecido?
A pergunta acima pressupõe que a felicidade verdadeira seja fruto da determinação de vencer desafios, problemas e infortúnios.
Tudo isso Sandra enfrentou e, de certa maneira, como todos mortais, continua enfrentando. Mas é a maneira como ela transforma essa matéria-prima em música que torna seu trabalho singular.
Para começar, Sandra acredita que o ser humano é viável. E ela busca em suas letras comprovar sua crença:
Traço meu destino em linhas sutis/
Às vezes alinho, outras desatino/
Volto ao meu lugar/
Ou a lugares que desconheço/
Às vezes padeço, outras só me esqueço/
É tão difícil lá chegar/O que me interessa é continuar
Na procura do luar
“Mestiço é que é bom”
Filha de pai negro e mãe branca, sua "mulatice" a coloca diante das coisas do mundo e da sua vida numa perspectiva ao mesmo tempo original e inquietante. Lembra a provocação do livro de Darci Ribeiro: Mestiço é que é bom!
Nascida em Lisboa, reduto do fado cantado, cuja origem, segundo o historiador José Tinhorão, é o lundu afro-brasileiro, Sandra canta o fado, sem se reivindicar fadista.
Interpreta João Bosco/Aldir Blanc, sem ter pisado o chão da Lapa carioca.
E de sua época de adolescente, em que se dividia entre o backing vocal para bandas de rock, e a "canja" em shows de conjuntos de jazz, Sandra preserva o suingue e o prazer de estar no palco, que ela domina com charme e sedutora simpatia.
Respaldada por sua competência e profissionalismo de perfeccionista, Sandra não teme correr riscos. Por exemplo, quando celebra a felicidade da maternidade sem parecer piegas, em Três Amores Perfeitos:
A vida dá sementes de amores perfeitos/
Três rios da minha fonte/Três aromas de alegria/
Desaguam nas águas de todas as poesias/
Eu canto nas marés os três destinos a navegar/
O melhor que a vida tem/O melhor que a vida pode dar.
O fato é: com as escolhas que faz, e que segue com apuro e rigor, Sandra Fidalgo desafia nossos ouvidos a saírem da zona de conforto, ou desconforto, e se deixarem levar pelo transe suave do lirismo de seus versos.
Ouvir as canções de Manhã Azul é como praticar a Arte Zen da Meditação em movimento, transitando em meio ao caos.
Antropofagia inversa
Sandra trocou a terrinha pelo Brasil, tendo se fixado com sua família no interior do estado de São Paulo, distante cerca de hora e meia da capital. Na bagagem trouxe três álbuns produzidos lá, e um desejo imenso de amalgamar sua música com elementos da musicalidade brasileira.
Para atingir seu objetivo, ela pratica como que uma antropofagia inversa: seus ouvidos têm selecionado para cúmplices de seus projetos músicos virtuosos, arranjadores inspirados, todos sintonizados com sua sensibilidade poético musical. Caso de talentos reconhecidos como Toninho Ferraguti, Gilson Peranzzetta, Webster Santos, Necka Ayala e Swami Junior.
Manhã Azul conta ainda com a participação para lá de afetuosa de Zeca Baleiro, com quem Sandra divide a interpretação de Mundo Novo, uma utopia em um mundo tão distópico:
Às vezes faltam palavras que purifiquem sentimentos
Flutuando em paisagens de infinitos movimentos
Nascendo palavras da igualdade da alma e gratidão
Nascendo palavras da liberdade num grito de união
Cada um de nós sabe: cá dentro existem todas as possibilidades
Nascendo palavras no mundo novo da verdade seu perdão
Nascendo bondades da palavra do homem
Abraçando e sendo irmão
Alquimia luso-brasileira
Sal foi o nome dado por Sandra ao show que abriu sua agenda no ano de 2023, que promete ser de lançamentos de trabalhos concebidos desde a pandemia. Nada mais justo que a turnê para mostrar ao vivo o repertório de Manhã Azul receba o nome de Mel. Uma sugestão, apenas.
Mas ocorre que até junho, o mês em que Manhã Azul foi lançado, os “melhores ouvintes” da música que merece ser ouvida, continuavam desconhecendo o nome e o trabalho de Sandra Fidalgo; seus tesouros, suas joias musicais.
Ou seja: Sandra descobriu o Brasil. Nós, brasileiros, é que ainda não descobrimos o seu talento.
Até quando?
Hoje canto o fado e as raízes de mim
Encontro em toda parte silêncios que vivi
Hoje eu canto o fado, meu canto é de amor
Jardins em que me guardo minha vida minha dor
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Veja o clipe de Mundo Novo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0AQ8JpgKKy4
E o de Manhã Azul aqui: https://www.youtube.com/watch?v=6STN0At9i-M