Oriana e sua moto
No Brasil, as mulheres estão no comando também na literatura. Nas estantes físicas ou virtuais já nem espanta o número crescente de autoras naquele espaço dedicado a lançamentos. E as novas já competem em número e espaço na mídia com as notícias sobre cantoras e seus novos trabalhos.
“Naquela tarde, ele não chegou nem perto do morro. Um estampido surdo e seco, outro que ecoou, outro que ricocheteou, outro baque no peito e uma quentura pelo braço fizeram com que desse passos para trás antes de as pernas fraquejarem.”
Paola Gentile demorou para dar vazão a um talento que há muito pedia passagem entre os demais talentos da autora que o precederam.
Jornalista muitas vezes premiada, ela passou por redações importantes até focar a Educação.
“A mão direita protegeu o ferimento, arranhou-se no paralelepípedo ainda escaldante, soltando o calor absorvido do dia e o odor putrefato do chorume que escorria dos sacos de lixo nas calçadas.”
O desafio que Paola se impôs ao escolher como tema da história neste seu novo livro não é para principiantes. A protagonista de “E Oriana comprou uma motocicleta” é uma professora escondida no mais escondido rincão desse Brasil trevoso em que nos encalacramos.
Um momento bizarro de nossa história em que muita gente acha normal uma pessoa pública atacar a reputação de professores, usando como comparação a figura de um narcotraficante.
“Os filhos, alunos de Oriana, haviam passado na seleção do colégio da capital, conseguido bolsa, ‘Sou grata a você por toda a vida, professora, tirou meus filhos dessa vida e colocou eles noutro caminho, Deus te dê em dobro’, sempre dizia.”
Em um ambiente tão tóxico, ler o texto de Paola funciona como um poderoso detox contra os efeitos provocados pelo lixo que mentalidades apodrecidas nos oferecem há pelo menos cinco anos em doses diárias.
Que a protagonista de sua segunda obra de ficção seja uma professor anônima e esquecida, só comprova o quanto nos deixamos preguiçosamente impregnar pelos preconceitos que enxergamos com muita facilidade nos outros, mas, quase nunca em nós mesmos.
Por outro lado, ao contar a história de Oriana, Paola não paga pedágio ao bom-mocismo acomodado nas bolhas maniqueístas, que se contentam em fazer o “L” de olho nas estatísticas das redes sociais, conferir os cliques e o número de “joinhas”, e se sentir com a consciência apaziguada.
“Estômago embrulhado com a fumaça rançosa das velas. As chamas, o calor, a carne com sangue coagulado e os crisântemos brancos, amarelos e azuis, gérberas com algumas pétalas queimadas, antúrios quase murchos.”
Trata-se de uma história de superação, mas não ao gosto do figurino de homens de ideias liberais, neoliberais que enaltecem suas “cônjas” recatadas e esteticamente harmonizadas como Barbies com diploma superior, talvez comprado.
Na história que Paola conta se respira o ar quente, seco e poeirento de um Brasil que vai cedendo sua natureza à devastação de suas florestas exuberantes, para acomodar a boiada inteira que alimentará o mundo, mas não a totalidade da sua população.
“Na caderneta de notas, passa a mão. Uma, duas, três. O olhar da caderneta para a moça, da moça para a caderneta, da caderneta para os seios, dos seios para a porta, da porta para os lábios, dos lábios para a caderneta. Abriu a caderneta.”
E o único sinal do progresso que uma Oriana vislumbrou como possibilidade de liberdade é a moto que ela nem aprendeu a pilotar, antes de comprá-la.
Ao longo da leitura desta obra de Paola Gentile sentimos um desejo de tomar partido, interferir, torcer. Por quem? Por Oriana? Pelo Brasil? Ou por nós?
Uma esperança: que sua próxima ficção seja ainda melhor do que esta. Se não for pedir demais.
“Nossa! Nem liguei pro Leonel antes de sair!”, lembrou que deveria ter feito isso, agora voltaria tarde, não ia telefonar de madrugada, acordá-lo, ouvir desaforos depois de uma noite singular. (...) Não, não foi nada difícil, era só entrar no ônibus que tudo se diluía num caldo que parecia ser de um presente que virava passado a cada quilômetro rodado, a cada segundo de distância, um tempo que não voltaria.”
“E Oriana Comprou uma Motocicleta – A história de uma professora brasileira.” Autora: Paula Gentile. Editora Europa. Páginas: 182. 1ª Edição impressa: 2023. Disponível para aquisição na Amazon.