Abaixo do Equador, pecado rasgado; acima, padecimento.
A linha do Equador divide o fado dançado no Brasil do fado cantado em Portugal.
Pensemos o lundum/lundu em meio ao ambiente da Corte de D João VI, no Rio de Janeiro. Lembrando que, em 1808, a Corte deixa Portugal já entrando no inverno, e desembarca na Bahia, no dia 22 de janeiro, no começo do verão.
Homens e mulheres vestindo aqueles trajes pesados em que ceroulas, camisetas, saias e vestidos longos, saiotes, corpetes, meias até os joelhos, camisas de mangas compridas, fechadas na gola, sapatos e botas de couro ou tecidos igualmente resistentes, em que algodão grosso e veludo se destacam.
Mulheres de cabelos longos, homens de barba cerrada e a cabeça adornada por aquelas perucas empoadas, que logo serão substituídas por chapelões de couro para proteger o cérebro dos raios do sol escaldante e as temperaturas altas como jamais se conhecia na Europa.
A família real e a parte da Corte que conseguiu embarcar em Lisboa, se instalam no começo de sua temporada brasileira em Salvador, a cidade brasileira mais negra do Brasil.
Em março, a Corte se transfere para a cidade do Rio de Janeiro, lá chegando no finalzinho do calor, o que, convenhamos, para a sensibilidade térmica de um europeu, pouco deve ter mudado.
Corpos aprisionados excitam mentes prisioneiras
D Maria I, a rainha Louca, ou A Beata, na maledicência popular, que em Lisboa proibiu as mulheres de se aproximarem do Teatro, não importa se na plateia ou no palco, de repente se vê em um lugar em que nesgas de nudez são exibidas nas ruas, nas praças, até mesmo dentro das casas, onde os escravos e as escravas se vestem com trajes mínimos, que mal cobrem as vergonhas, deixando à mostra pedaços estratégicos de corpos melados de suor, a incendiar a libido do mais fervoroso, ou fervorosa, fiel: pés, tornozelos, ombros, colos...
E lábios carnosos, adornos de sorrisos cativantes, promessa de felicidade gratuita, prazerosa, pecaminosa aos olhares reprimidos e repressores do fiel temente a Deus e ao Diabo.
Dos homens, músculos tesos, resultado do manejo da enxada, da foice, do ancinho, da tração das carroças. Corpo sarado no ritmo e nos passos do jogo de capoeira.
Das mulheres, a postura ereta pelo carregar sobre a cabeça as cabaças e os pesados vasos de cerâmica cheios de água, num ir-e-vir diário entre as bicas da rua e as cozinhas das casas, cujo andar de requebros e maneios, espicaça desafia o desejo dos machos no cio.
Aqui é importante lembrar que, desde o século 17, circula entre as pessoas letradas da Europa, a ideia de que abaixo da linha do Equador o pecado não existia.
Dança pagã em festas sagradas
Em Portugal, a primeira confirmação desse pensamento tinha sido a Carta de Caminha, no trecho em que ele descreve a reação dos homens diante das indígenas – mas, sabemos, das indígenas diante dos “visitantes” também – particularmente ao mirar aquela região do corpo onde, ao contrário das mulheres portuguesas “peludas”, as indígenas “têm os pelos cerradinhos”.
Esse jogo de atração sensual entre corpos através dos passos da dança, das letras e do ritmo da música que o lundum, ou lundu, explicita, acontecia muitas vezes em uma festa religiosa de batizado, como narrado no célebre trecho do romance Memórias de um sargento de milícias.
A atmosfera dos arredores das cidades como Rio de Janeiro e Salvador da época era rural. As casas, como em São Paulo e Olinda eram muito parecidas com as casas de uma chácara, com pomar, horta, criação de galinhas, porcos e todos os bichos que os donos quisessem domesticar.
Não se pagava pelo sexo fortuito com o escravo ou a escrava. Mantinham-se as aparências. O máximo que aquele corpo entendido como mercadoria podia obter em troca do prazer que proporcionava, era alguma facilidade ligeira no trabalho, um presentinho, um tratamento menos cruel.
Se insinuar ao ponto de enfeitiçar quem explora seu corpo era estratégia de sobrevivência. Que, em alguns casos, poderia se transformar em amor interesseiro: “Xica dá, Xica dá, Xica dá Silva! A negra”, canta Jorge Ben, na trilha do filme de Cacá Diegues.
O fado de volta à Lisboa, e as regras do jogo
O sexo na colônia era bem diferente do sexo pago no contexto do sexo nos bordéis, lupanares e “casas de fado”, recintos de má reputação, localizados próximos ao cais do porto de Lisboa, cidade urbanizada, ainda que atrasada no tempo e no espaço, quando comparada com as grandes capitais como Paris e Londres, na época. É nesses locais que o fado é aconchegado, cria raízes, se diversifica.
Visualizando esses dois contextos – colônia rural e metrópole urbana – é até natural que as letras do fado, como a música e o seu ritmo, na colônia exaltassem o prazer sexual do jogo erótico, que aqui rolava em um clima em que o pagamento pelo prazer não acontecia do jeito que é praticado em um bordel, onde várias vezes na mesma noite, todos os dias, se faz sexo por obrigação, ou necessidade, porque em troca do sustento. Não só da prostituta, mas, principalmente, do homem que a explora. Em alguns casos, sustento também das demais mulheres que fazem parte do negócio.
E nesse ambiente de erotismo calculado, tudo fica misturado e junto: patrões, funcionários ou nobres, desde que tenham como pagar por hora, hora e meia de prazer, são bem-vindos.
E o fadista pode ser tanto um explorado como um explorador. E é no momento que o fado toca, e enquanto ele durar, que essas diferenças se diluem e, ao som melancólico da guitarra, afinidades florescem.
Em seu começo nos bairros boêmios de Lisboa, esse fado trazido do Brasil mantém traços que o identificam com o fado dançado, impregnado da lascívia e de outras características do lundu. Mas logo irá mudar.
Corpo que se vende, mas não goza
Com o passar do tempo, em Portugal, o que era festa virou ofício. Mulher da vida, em serviço, o coração não palpita por amor. Esse sentimento é reservado para quem ela deseja e, talvez, acredite que ame: seu homem, seu cafetão, seu fadista, seu marialva.
E se ele a trai, se ele é homem de muitas mulheres, se ele a espanca porque não conseguiu o dinheiro que ele exige para sua manutenção pessoal, se ele a abandona porque envelhecida, doente, e por esse motivo já não consegue entregar o que conseguia quando se viu nessa vida, não há por que essa mulher fadista rodada, apesar de jovem, meretriz e cantora, ter motivo para interpretar fados alegres, com letras picantes para atiçar a libido do homem.
Mas, ainda assim, algumas cantam.
E por aí que temas mais pungentes relacionados a essa situação dramática passam a sensibilizar e a inspirar a imaginação e a criatividade dos compositores fadistas.
São sentimentos de abandono, comiseração, e o prazer que se perdeu e que não mais irá ser recuperado nos braços de outro homem, ou de outra mulher. Saudade, melancolia, tristeza.
Como a pioneira e mártir, a Severa, muitas fadistas morrem jovem, vítimas de doenças que denunciam a condição marginal da vítima, em uma época em que ser cantora de fado e prostituta significam a mesma coisa.
Outros fatores colaboraram para o tornar o fado cantado português mais triste, sorumbático, a partir do retorno do Brasil, da família real e sua corte. Sem que isso tenha acabado de vez com a possibilidade de se ouvir fados que celebram a alegria e o prazer.
Coimbra é uma lição
Se assim aconteceu em Lisboa, algo diferente sucede quando o fado é assimilado em Coimbra. Aí, são os estudantes da Universidade os primeiros a se interessar por ele. E são eles que vão introduzir mudanças, a começar pela afinação da guitarra portuguesa, que é diferente da afinação de Lisboa.
Também na maneira de compor os versos, os fadistas de Coimbra inovaram. E igualmente na temática das letras, introduziram alterações.
Se firma em Portugal uma característica marcante do fado: ser uma manifestação musical urbana, cultivado com fervor principalmente em Lisboa, Coimbra e n’O Porto.
Quando, e se, o fado chega a uma região rural, o impacto que provoca é diferente, pois nesses locais, a força das tradições, muitas nascidas antes da Idade Média, mantêm seu vigor. E os sentimentos de amor que enaltecem são de alegria e alguma ingenuidade se comparados ao espírito de sensualidade carnal que se conhece nas cidades.
Mas só até quando as pessoas conseguirem se conformar com a precariedade econômica e a falta de perspectiva do campo. Algumas vão preferir arriscar, deslocando-se primeiro para a cidade grande, Lisboa, a primeira delas.
E aí, diante da falta de emprego, ao se fixarem nos bairros pobres, vão juntar-se à massa de desocupados e, na transição do fado dançado para o fado cantado, dar sua contribuição a essa nova configuração, ao acrescentar elementos da música e da dança típicos de regiões de onde vieram.
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Ilustrações:
Quadro: "Jogar capoeira ou Danse de la guerre" de John Moritz Rugendas, de 1835.
Tela: O Fado de José Malhoa.